Wilson da Costa Bueno*
Os dados de uma pesquisa da FIPECAFI (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis), sob a responsabilidade de professores da Universidade de São Paulo, são contundentes: uma parcela significativa de empresas anda divulgando balanços não transparentes, que podem, inclusive, ser considerados irregulares. Pior: isso não acontece com empresas quaisquer, mas até com uma em cada três companhias brasileiras com ações na Bolsa.
Conclusão óbvia: em muitos casos, não adianta esperar que as empresas façam por conta própria a lição de casa porque elas têm um problema no seu genoma organizacional, uma mutação no gene "transparência" ou, para ser mais direto, sofrem da "síndrome da falta de responsabilidade empresarial".
Mas, como foi essa pesquisa e o que exatamente ela revelou? Ela analisou as demonstrações financeiras e balanços relativos a 2007 de centenas de empresas, com ou sem ações na Bolsa, e descobriu que informações e instrumentos obrigatórios não estão presentes, sinalizando seja para ausência de boas práticas contábeis, seja para tentativa de mascarar os dados. Em todos os casos, a falta de transparência penaliza os investidores, clientes, fornecedores e até funcionários que se interessam em saber "a quantas andam" as empresas às quais estão vinculados, em que aplicam seus recursos, para as quais fornecem ou das quais adquirem produtos ou serviços.
A opinião do professor Gerlando Augusto Lima, um dos coordenadores do estudo, citada em matéria na capa do Caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo, de 18 de agosto de 2008, é reveladora: "´É vergonhoso. Não podemos dizer que estão todos fora da lei, mas elas não estão atendendo aos princípios mínimos da legislação societária. No estudo, descartamos empresas que apresentam cinco linhas de relatório da administração e que acham que estão cumprindo o mínimo. Em cinco linhas não dá para explicar o contexto operacional de uma empresa."
As irregularidades ou omissões são ainda maiores nas empresas de capital fechado, segundo o estudo: apenas uma em cada 5 respeita as regras básicas de transparência. Há grandes empresas incluídas neste conjunto e, como a FIPECAFI não revela os seus nomes, a gente fica sem saber, mas suspeitando de um montão delas. Muitas devem estar incluídas naquele grupo que encaminha muito dinheiro para suas matrizes, promovem lobbies formidáveis e vivem por aí defendendo a auto-regulação pelo mercado, advogando hipocritamente a tesede que raposas espertas possam ser escaladas para tomar conta do galinheiro.
Em tempos de governança corporativa, este cenário é desolador e evidencia a dissonância entre o discurso e a prática, a ineficácia da fiscalização e a verdadeira postura de boa parte das nossas organizações que, no fundo, não assimilaram os princípios e os valores dos novos tempos.
A imprensa precisa estar mais atenta a estas distorções e exigir transparência das empresas, em vez de continuar abrindo espaço para organizações que não respeitam os cidadãos, descumprem a legislação e inclusive atrapalham o próprio trabalho de veículos e de jornalistas que, em tese, deveriam estar comprometidos com o interesse público.
Coletivas pirotecnicamente bem organizadas; releases bem escritos (mas falsos) proclamando responsabilidade social, gestão ambiental e boas práticas de governança; materiais coloridos (mas com informação não qualificada) costumam fazer parte deste arsenal de manipulação a que se submetem, infelizmente, colegas da mídia e veículos, pouco críticos e investigativos.
O número crescente de empresas na Bolsa , e inclusive integrando os níveis mais refinados da governança - viva o Novo Mercado - não deve, como podemos ver, ser saudado como indicativo de uma mudança de postura das organizações porque não passa, muitas vezes, apenas uma tentativa oportunista de ganhar espaço e dinheiro fácil (?) e de aparecer "bem na fita".
Os comunicadores empresariais - pelos menos aqueles que têm dignidade e compromisso profissional porque muitos sentam literalmente no colo dos patrões e clientes para manterem empregos e contratos - sabem que muitas das empresas que fazem a apologia de sua comunicação democrática continuam autoritárias como sempre, arrogantes como nunca, maltratando os seus funcionários (você soube da condenação da AmBev no Rio Grande Norte pela prática do endomarketing da humilhação?) ou ainda apropriando-se do prestígio de ONGs para o trabalho de "limpeza de imagem" e fortalecimento da marca.
Os jornalistas deveriam dar uma lição nas empresas que fogem deles quando os dados a serem divulgados não são favoráveis e que os procuram insistentemente quando têm algo do seu interesse para divulgar. A reportagem da Folha sobre o estudo da FIPECAFI "dedou" a Vivo que, depois de sete anos, resolveu mudar a sua conduta e adotar uma postura "low profile" com a mídia. Entregou também as empresas do agronegócio, de telecomunicações em geral e do setor financeiro, que, com exceções, fogem da imprensa como o diabo da cruz, evidenciando que muitas não querem ao menos revelar os seus altos lucros. Empresas não transparentes não devem merecer atenção da mídia, não é justo "levantar a bola" delas porque não respeitam quem necessita de informações, particularmente de informações precisas, qualificadas, como os jornalistas e os analistas financeiros (para não falar dos investidores que bancam seus negócios).
Mas talvez seja mesmo utopia pregar esta conduta para a imprensa, quando se percebe que jornalões (vide Folha e Estadão) descem a lenha em determinadas empresas em suas reportagens e editoriais e depois as procuram para parcerias em negócios. Você já percebeu que eles costumam criticar partidos e categorias profissionais (outro dia a Folha denunciou o apoio de empresas a reunião de juízes federais) pela aproximação com empresas, mas fazem exatamente o mesmo? Sabia que a Philip Morris, que freqüenta o noticiário pela sua ação nefasta (como a Souza Cruz vende drogas - lícitas , eu sei ) e nem sempre muito transparente, está de mãos dadas com a Folha e o Estado em seus cursos de formação de jornalistas? Precisava? Não há parceiros mais confiáveis? Não dá para promover estes cursos - que são de interesse sobretudo dos jornais - sem recorrer a empresas que eles próprios definem como não éticas? Dinheiro é dinheiro, pensam os empresários da mídia e não tem cor ou cheiro.
Há macacos que andam por aí pisando no próprio rabo e, infelizmente, a mídia não escapa dessa, não é verdade?
Precisamos ser coerentes, críticos, investigativos e exigir (ainda que nem sempre consigamos) que as autoridades punam os que afrontam a legislação e prejudicam, com a falta de transparência, os cidadãos brasileiros. Quem não tem competência, diz o ditado, não deve se estabelecer. Quer estar na Bolsa? Precisa ser transparente e pronto. Não há mais espaço para empresas que funcionam como caixa-pretas, que manipulam e omitem informação relevante. É fundamental castigá-las exemplarmente e a mídia poderia começar dando o exemplo, negando-lhes espaço para os seus arroubos.
A governança corporativa não pode ser mais um discurso vazio, como já se tornou o da responsabilidade social e está se tornando o da sustentabilidade (empresa que vende agrotóxico e a indústria do tabaco podem ser sustentáveis?).
Há uma máxima que criei e que gosto de repetir sempre: quem não se comunica, de duas uma: ou tem pouca coisa para falar ou muito para esconder. Falta transparência no Novo Mercado. Falta muita coisa para uma nova sociedade.
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* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor
do programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto
Comunicação e Pesquisa.